Leandro Fortes
Há anos, nem me lembro mais quantos, os principais
colunistas e repórteres de política do Brasil, sobretudo os de Brasília,
reputam ao senador José Sarney uma aura divinal de grande articulador
político, uma espécie de gênio da raça dotado do dom da ponderação, da
mediação e do diálogo. Na selva de preservação de fontes que é o
Congresso Nacional, estabeleceu-se entre os repórteres ali lotados que
gente como Sarney – ou como Antonio Carlos Magalhães, em tempos não tão
idos – não precisa ser olhada pelas raízes, mas apenas pelas folhagens.
Esse expediente é, no fim das contas, a razão desse descolamento absurdo
do jornalismo brasiliense da realidade política brasileira e, ato
contínuo, da desenvoltura criminosa com que deputados e senadores
passeiam por certos setores da mídia.
Olhassem Sarney como ele é, um coronel arcaico, chefe
de um clã político que há quatro décadas domina a ferro e fogo o
Maranhão, estado mais miserável da nação, os jornalistas brasileiros
poderiam inaugurar um novo tipo de cobertura política no Brasil.
Começariam por ignorar as mentiras do senador (maranhense, mas eleito
pelo Amapá), o que reduziria a exposição de Sarney em mais de 90% no
noticiário nacional. No Maranhão, a família Sarney montou um feudo de
cores patéticas por onde desfilam parentes e aliados assentados em
cargos públicos, cada qual com uma cópia da chave do tesouro estadual,
ao qual recorrem com constância e avidez. O aparato de segurança é
utilizado para perseguir a população pobre e, não raras vezes, para
trucidar opositores. A influência política de Sarney foi forte o
bastante para garantir a derrubada do governador Jackson Lago, no início
do ano, para que a filha, Roseana, fosse reentronizada no cargo que,
por direito, imaginam os Sarney, cabem a eles, os donatários do lugar.
José Sarney é uma vergonha para o Brasil desde
sempre. Desde antes da Nova República, quando era um político
subordinado à ditadura militar e um representante mais do que típico da
elite brasileira eleita pelos generais para arruinar o projeto de nação –
rico e popular – que se anunciava nos anos 1960. Conservador,
patrimonialista e cheio dessa falsa erudição tão típica aos escritores
de quinta, José Sarney foi o último pesadelo coletivo a nós impingido
pela ditadura, a mesma que ele, Sarney, vergonhosamente abandonou e
renegou quando dela não podia mais se locupletar. Talvez essa
peculiaridade, a de adesista profissional, seja o que de mais temerário e
repulsivo o senador José Sarney carregue na trouxa política que carrega
Brasil afora, desde que um mau destino o colocou na Presidência da
República, em março de 1985, após a morte de Tancredo Neves.
Ainda assim, ao longo desses tantos anos, repórteres e
colunistas brasileiros insistiram na imagem brasiliense do Sarney
cordial, erudito e mestre em articulação política. É preciso percorrer o
interior do Maranhão, como já fiz em algumas oportunidades, para
estabelecer a dimensão exata dessa visão perversa e inaceitável do
jornalismo político nacional, alegremente autorizado por uma cobertura
movida pelos interesses de uns e pelo puxa-saquismo de outros. Ao olhar
para Sarney, os repórteres do Congresso Nacional deveriam visualizar as
casas imundas de taipa e palha do sertão maranhense, as pústulas dos
olhos das crianças subnutridas daquele estado, várias gerações marcadas
pela verminose crônica e pela subnutrição idem. Aí, saberiam o que
perguntar ao senador, ao invés de elogiar-lhe e, desgraçadamente,
conceder-lhe salvo conduto para, apesar de ser o desastre que sempre
foi, voltar à presidência do Senado Federal.
Tem razão o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao
afirmar, embora pela lógica do absurdo, que José Sarney não pode ser
julgado como um homem comum. É verdade. O homem comum, esse que acorda
cedo para trabalhar, que parte da perspectiva diária da labuta incerta
pelo alimento e pelo sucesso, esse homem, que perde horas no transporte
coletivo e nas muitas filas da vida para, no fim do mês, decidir-se pelo
descanso ou pelas contas, esse comum é, basicamente, honesto e
solidário. Sarney é o homem incomum. No futuro, Lula não será julgado
pela História somente por essa declaração infeliz e injusta, mas por ter
se submetido tão confortavelmente às chantagens políticas de José
Sarney, a ponto de achá-lo intocável e especial. Em nome da
governabilidade, esse conceito em forma de gosma fisiológica e imoral da
qual se alimenta a escória da política brasileira, Lula, como seus
antecessores, achou a justificativa prática para se aliar a gente como
os Sarney, os Magalhães e os Jucá.
Pelo apoio de José Sarney, o presidente entregou à
própria sorte as mais de seis milhões de almas do Maranhão, às quais,
desde que assumiu a Presidência, em janeiro de 2003, só foi visitar esse
ano, quando das enchentes de outono, mesmo assim, depois que Jackson
Lago foi apeado do poder. Teria feito melhor e engrandecido a própria
biografia se tivesse descido em São Luís para visitar o juiz Jorge
Moreno. Ex-titular da comarca de Santa Quitéria, no sertão maranhense,
Moreno ficou conhecido mundialmente por ter conseguido erradicar daquele
município e de regiões próximas o sub-registro civil crônico, uma das
máculas das seguidas administrações da família Sarney no estado. Ao
conceder certidão de nascimento e carteira de identidade para 100%
daquela população, o juiz contaminou de cidadania uma massa de gente
tratada, até então, como gado sarneyzista. Por conta disso, Jorge Moreno
foi homenageado pelas Nações Unidas e, no Brasil, viu o nome de Santa
Quitéria virar nome de categoria do Prêmio Direitos Humanos, concedido
anualmente pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência
da República a, justamente, aqueles que lutam contra o sub-registro
civil no País.
Em seguida, Jorge Moreno denunciou o uso eleitoral
das verbas federais do Programa Luz Para Todos pelos aliados de Sarney,
sob o comando, então, do ministro das Minas e Energia Silas Rondeau –
este um empregado da família colocado como ministro-títere dentro do
governo Lula, mas de lá defenestrado sob a acusação, da Polícia Federal,
de comandar uma quadrilha especializada em fraudar licitações públicas.
Foi o bastante para o magistrado nunca mais poder respirar no Maranhão.
Em 2006, o Tribunal de Justiça do Maranhão, infestado de aliados e
parentes dos Sarney, afastou Moreno das funções de juiz de Santa
Quitéria, sob a acusação de que ele, ao denunciar as falcatruas do clã,
estava desenvolvendo uma ação político-partidária. Em abril passado, ele
foi aposentado, compulsoriamente, aos 42 anos de idade. Uma dos algozes
do juiz, a corregedora (?) do TER maranhense, é a desembargadora Nelma
Sarney, casada com Ronaldo Sarney, irmão de José Sarney.
Há poucos dias, vi a cara do senador José Sarney na
tribuna do Senado. Trêmulo, pálido e murcho, tentava desmentir o
indesmentível. Pego com a boca na botija, o tribuno brilhante, erudito e
ponderado, a raposa velha indispensável aos planos de governabilidade
do Brasil virou, de um dia para a noite, o mascate dos atos secretos do
Senado. Ao terminar de falar, havia se reduzido a uma massa subnutrida
de dignidade, famélica, anêmica pela falta da proteína da verdade. Era
um personagem bizarro enfiado, a socos de pilão, em um jaquetão coberto
de goma.
Na mesma hora, pensei no povo do Maranhão.