quinta-feira, 20 de agosto de 2015

A corrupção ainda no primeiro plano

Nos tempos hipermodernos em que nos encontramos, a corrupção tornou-se um problema que desafia e surpreende.
Nem seria preciso a recente descoberta de um vasto esquema de fraudes, ilícitos e cobrança de propinas no coração da Prefeitura de São Paulo para que a corrupção voltasse ao primeiro plano. Correndo ao lado da CPI de Carlos Cachoeira, da cassação do senador Demóstenes e do vai-e-vem que cerca o início do julgamento dos acusados pelo mensalão de 2005, as novas suspeitas turbinaram o problema.
O caso paulistano é escabroso, para dizer o mínimo. Deixa patente que a corrupção tem mil tentáculos. Não é comandada por um centro articulador claramente localizado. Sua cabeça não está em Brasília, por exemplo. O fenômeno está disseminado, podendo se manifestar em qualquer canto do país, e talvez seja até mais grave quanto mais baixo se desce na estrutura político- administrativa do Estado, onde há menos fiscalização e controle. Também não é monopólio de nenhum grupo ou partido; todos estão sujeitos a ela e todos podem vir a praticá-la, ativa ou passivamente. Não reconhecer isso é limitação ideológica.
Se quisermos enfrentar a sério o problema, vale a pena dilatar o conceito, para nele incluir, além dos crimes financeiros, uma série de procedimentos e atos que produzem menos frisson, mas são igualmente graves. Ou não haveria corrupção, por exemplo, na atitude de um parlamentar que se ausenta do plenário mas permite que seus assessores registrem sua presença e votem em seu nome? Não seria corrupto um servidor público que exige, do usuário dos serviços, um elenco enorme de documentos e exigência só para postergar o atendimento, ou justificar uma falha do sistema? Um policial que achaca e humilha um suspeito só pelo prazer de vê-lo acatar sua autoridade é tão corrupto quanto o cidadão que sonega o imposto de renda porque se convenceu de que o governo usa mal o dinheiro que arrecada.
A corrupção é uma falha ética. Anda junto com o poder (político, econômico ou ideológico), como se fosse uma espécie de efeito colateral: onde há poder e poderosos há sempre a probabilidade de abuso, e no abuso está a raiz da corrupção.
Nos tempos hipermodernos em que nos encontramos, a corrupção tornou-se um problema que desafia e surpreende. Redes, tecnologias de informação e comunicação, uso intensivo do espaço virtual, uma mentalidade que transforma tudo em mercadoria, oportunidade e negócio, um desejo socialmente incontido de consumir e ostentar, tudo isso atiça a corrupção. Faz com que ela tenda a ficar fora de controle, a ultrapassar fronteiras, a se sofisticar. O crime organizado, o narcotráfico, os atentados ambientais, a luta sôfrega por mercados, a facilidade com que se obtêm informações, são muitos os combustíveis.
Mas aquilo que a impulsiona também ajuda a freá-la: os mesmos fluxos virtuais funcionam como vitrines de atos escabrosos, roubando legitimidade deles e de certo modo controlando-os. A democratização da vida social faz com que o poder se torne mais visível e menos onipotente. Além do mais, o Estado brasileiro não é indefeso; está institucionalizado e bem aparelhado, dispõe de atualizados sistemas de controle internos e externos à administração pública, que criam incentivos à accountability, ao controle da burocracia, à isenção e à transparência. O poder público é vigiado pela sociedade civil, pela mídia, pela opinião pública, tem seus serviços avaliados cotidianamente pelos cidadãos. A corrupção é condenada pela opinião pública, algumas punições ocorrem e há muitos esforços governamentais para debelá-la.
Mesmo assim, problema persiste. O que sugere que ainda não conhecemos suficientemente seus meandros e suas determinações.
Ainda não avaliamos, por exemplo, a real força que o dinheiro tem na modelagem do Estado, no exercício do poder político, no funcionamento do sistema representativo, no processo eleitoral e no modo de fazer política. Talvez por acreditarmos que um regime democrático está vacinado contra desvios e defeitos, menosprezamos a análise das relações entre os negócios e a democracia. Abandonamos a discussão sobre a qualidade da democracia, tema que agora frequenta alguns núcleos acadêmicos mas que ainda não estacionou no centro da agenda pública.
Também não conhecemos a fundo o efeito que a falência dos partidos como sujeitos de programa, vontade e ação tem na maré montante da corrupção. Nossos partidos não são mais “escolas de quadros”, espaços privilegiados de seleção de lideranças ou organizadores de consensos sociais. Passaram a potencializar os defeitos do sistema partidário, sua permissividade exagerada, sua flexibilidade e sua falta de critério institucional. Colaboram, com ou sem intenção, para rebaixar a qualidade da política e aproximá-la do submundo.
Esses dois fatores combinam-se perversamente em nosso “presidencialismo de coalizão”, minando o que se tem de avanço institucional em termos de controles sobre o Estado.
Por fim, precisamos acertar as contas com os fatores culturais da corrupção. Culpar a formação nacional ou a cultura política pelo que há de corrupção na sociedade é um mau caminho, especialmente se não se levar em conta a dinâmica social e a construção do Estado. Não há uma maldição cultural oprimindo a sociedade, por mais que se tenha de reconhecer que nenhum povo é livre de moldes culturais e tradições, que aderem a seu corpo como uma segunda pele. Cultura política é uma construção social, que acompanha o desenvolvimento histórico. Não podemos ignorá-la, mas será um erro se a empregarmos para naturalizar a corrupção.
Se juntarmos as pontas desse novelo, compreenderemos que a corrupção não é uma força da natureza, mas uma coisa dos homens. Em suma, algo que pode ser enfrentado e combatido, ainda que não possa ser peremptoriamente eliminado.
Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 28/07/2012, p. A2

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

O clientelismo e o exercicio do poder no Brasil

Paulo M. d’Avila Filho
[…] como a desigualdade existe de início, há duas orientações possíveis: a que tende a apagar a desigualdade pelo esforço social; e a outra que, pelo contrário, tende a recompensar todos na base de suas qualidades desiguais. Weber afirmava […] que entre essas duas tendências antitéticas […] não há escolha governada pela ciência, todo homem escolhe seu Deus ou seu demônio por si mesmo (Raymon Aron).
O clientelismo é um destes termos que, como o populismo, usamos de forma recorrente para explicar certos males nacionais que seriam provenientes de uma condição inescapável de país atrasado. Diagnóstico que vem acompanhado de todos os subprodutos que lhe são peculiares. Uma elite constituída de “raposas velhas” que manipulam um povo ignorante e indefeso em função da sua miséria e baixa escolaridade. Assim, populismo e clientelismo são expressões que nos vêm à mente de imediato quando nos defrontamos com determinada forma de exercício do poder político com a qual não compartilhamos. São termos “guerreiros”, freqüentemente utilizados para desqualificar a ação política de um outro.
Designam certo tipo de exercício do poder que considera demandas específicas de um potencial eleitor em seu cálculo político, obtendo algum tipo de apoio por parte desses demandantes. Quando o mesmo cálculo preside ações que consideramos positivas, chamamo-las de representação democrática de interesses.
Clientelismo, no entanto, é um conceito que descreve uma relação de troca política. Um tipo de troca distinta das trocas sociais em geral, mais inespecíficas, pois trocamos socialmente de tudo: afetos, redes de contatos, presentes etc. Diferente, também, das trocas econômicas, regularmente bem mais específicas – trocas de bens envolvendo mercadorias em uma racionalidade monetária.
O que há em comum entre as trocas sociais e as trocas econômicas é que podem acontecer entre atores sociais mais ou menos assimétricos, entre iguais ou entre sujeitos hierarquicamente dispostos. A troca pode, até mesmo, servir como meio de definição hierárquica dos participantes, como nos sugere Marcel Mauss, no qual o mais generoso é também o mais poderoso.
As trocas políticas, por sua vez, se caracterizam por serem sempre assimétricas, seja do ponto de vista do observador ou dos trocadores. Assimétrica porque opera em um eixo vertical no qual um dos participantes da troca, o demandante – classicamente chamado de cliente –, independente de sua posição social ou status, deseja obter as benesses dos recursos de autoridade política que um outro – tradicionalmente chamado de patronus –, de algum modo, controla ou influencia. São os chamados recursos patrimoniais do Estado sob gestão dos poderes públicos. Toda a sociedade, como nos sugere Weber, funda sua estrutura de organização e poder com base no maior ou menor controle desses recursos e no caráter inexoravelmente discricionário com que se tem acesso a eles. A especificidade do caráter clientelista da troca política diz respeito aos termos não regulados pela lei – embora não seja necessariamente ilegal –, mas fundados em acordo político ou na expectativa mútua entre patronus e cliente em auferir benefícios com a troca.