quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Democracia e anarquismo

Robert A. Dahl
Universidade de Yale
DEMOCRATA: Ouvi dizer que te dizes um verdadeiro defensor das ideias democráticas. Todavia, criticas democratas que, como eu, afirmam que a democracia deve ser a forma de governar o estado.
ANARQUISTA: Pois claro. Não podes transformar um mau estado num bom estado só por torná-lo democrático, do mesmo modo que não podes transformar um peixe podre num peixe fresco temperando-o com um molho especial.
DEMOCRATA: Caro amigo, deixa-me dizer-te que a tua metáfora cheira mal. Pareces pensar que um estado é inerentemente mau; contudo, não poderíamos viver uma vida decente sem um estado.
ANARQUISTA: Acho que quando ouvires o meu argumento, poderás aprovar a minha metáfora. Julgo que aprovas as minhas premissas e, se assim for, não vejo como podes discordar da minha conclusão.
DEMOCRATA: Vamos ver.
ANARQUISTA: A minha primeira premissa é que ninguém é obrigado a apoiar ou a obedecer a um mau estado.
O que torna esta afirmação poderosa é que ela não é apenas defendida pelos anarquistas, mas faz parte do conjunto de crenças do mundo ocidental de hoje. Como certamente concordarás, apesar de a defesa desta afirmação ter uma longa e complexa história no pensamento ocidental, ela ganhou nos tempos modernos uma aceitação geral.
DEMOCRATA: Eu não discordo disso.
ANARQUISTA: Exactamente! A força do nosso argumento é que assenta em premissas que a maioria de nós aceita. Neste século, o terror, a brutalidade e a opressão sistemáticos dos regimes totalitários converteram o que poderia ter sido uma proposta defensável numa afirmação quase incontestada. Democratas, liberais, conservadores, radicais, revolucionários, cristãos, judeus, muçulmanos, ateus e agnósticos, todos concordam connosco quando dizemos que nenhuma pessoa tem a obrigação de apoiar ou obedecer a um estado opressivo.
DEMOCRATA: Mas a questão é que um estado democrático não é um estado opressivo.
ANARQUISTA: Não tires conclusões sem antes escutares o que tenho ainda para dizer. A minha segunda premissa é que todos os estados são opressivos.
Aqui também nós, anarquistas, adoptamos uma crença largamente partilhada. Hoje em dia a opressão é geralmente entendida como uma característica essencial da própria definição de estado. Entre as características específicas que distinguem um estado de outras associações está a sua capacidade de impor sanções severas e até violentas sobre as pessoas que violam as suas regras ou leis.
DEMOCRATA: Eu dificilmente contestaria uma ideia tão elementar. Como qualquer estado, um estado democrático usará a opressão para fazer cumprir as leis democraticamente estabelecidas, se isso se revelar necessário.
ANARQUISTA: Estou contente por, até agora, estarmos de acordo. Estou certo que também concordarás com a minha próxima premissa que é a seguinte: a coerção é intrinsecamente má.
Mais uma vez, nós anarquistas, defendemos uma afirmação que poucas pessoas poderão contestar. A coerção significa forçar alguém a obedecer a algo, ameaçando física ou emocionalmente aqueles que se recusam obedecer. Na medida em que a coerção é bem sucedida as pessoas são obrigadas a obedecer às leis a que se opõem. Se a ameaça não resulta e a pessoa que desobedece é punida, o resultado é em geral o sofrimento físico na forma de prisão ou pior. Defender que consequências como estas são boas em si, ou mesmo neutras, seria perverso. Se pudéssemos atingir os nossos fins sem o uso da coerção e da punição, certamente que todos nós dispensaríamos esses meios.
DEMOCRATA: Não vou discutir a tua terceira premissa. Pelo contrário, nós democratas argumentamos que uma razão pela qual um estado deve ser democrata é precisamente porque um estado não é simplesmente uma associação voluntária. É porque possui a capacidade de coagir que um estado é potencialmente perigoso. Para garantir que o enorme poder de coagir de um estado seja usado para o bem público e não para o mal, é muito mais importante que o estado seja democrático do que qualquer outra associação privada o seja.
ANARQUISTA: Enquanto as minhas primeiras três afirmações podem ser facilmente aceites, a quarta já não o é: uma sociedade sem um estado é uma alternativa viável a uma sociedade com um estado.
DEMOCRATA: Todavia, essa afirmação é absolutamente essencial para os anarquistas. Sem ela o anarquismo seria apenas a apresentação de um problema filosófico para o qual não teria nenhuma solução.
ANARQUISTA: Claro. É a partir dela que vou defender a visão anarquista da sociedade na qual indivíduos autónomos em conjunto com associações voluntárias conseguem executam todas as actividades necessárias à realização de uma vida boa. Nós somos contra todas as formas de hierarquia e de coerção, não apenas no estado mas em qualquer tipo de associação.
DEMOCRATA: Apresenta então o resto do teu argumento.
ANARQUISTA: Vou apresentar o meu argumento de uma forma esquemática.
  1. Todos os estados são necessariamente coercivos e, por isso, são necessariamente maus;
  2. Todos os estados são necessariamente maus e, por isso, ninguém tem obrigação de obedecer ou apoiar um qualquer estado;
  3. Porque todos os estados são necessariamente maus, porque ninguém tem obrigação de obedecer ou apoiar qualquer estado, e porque uma sociedade sem um estado é uma sociedade viável, todos os estados deveriam ser abolidos.
Segue-se daqui que mesmo um processo democrático não pode ser justificado se apenas apresenta procedimentos, como a regra da maioria, para fazer aquilo que é inerentemente mau fazer, isto é: permitir que algumas pessoas coajam as outras. Um estado democrático continua a ser um estado, continua a ser coercivo e continua a ser mau.
Robert A. Dahl
Traduzido e adaptado por Luís Filipe Bettencourt

Nicolau Maquiavel

nicolau maquiavel
Nicolau Maquiavel foi um Italiano famoso da época do Renascimento. Filho de pais pobres, Maquiavel desde cedo se interessou pelos estudos. Tornou-se um importante historiador, diplomata, poeta, músico, filósofo e político italiano. Viveu durante o governo de Lourenço de Médici. Sua educação, porém, foi fraca quando comparada com a de outros humanistas, devido aos poucos recursos de sua família.

Nascimento de Nicolau Maquiavel

Cidade de Florença (Itália) em 3 de maio de 1469. Foi o terceiro de quatro filhos.

Morte de Nicolau Maquiavel

Nicolau morreu aos 58 anos de idade na mesma cidade em que nasceu, em 21 de junho de 1527.

Principal obra de Nicolau Maquiavel: O Príncipe

A obra mais importante e famosa de Nicolau Maquiavel foi escrita em 1513. Em O Príncipe, Maquiavel aconselha os governantes sobre como governar e manter o poder absoluto, mesmo que seja necessário utilizar forças militares para alcançar tal objetivo. Esse livro que sugere a famosa expressão: “os fins justificam os meios”, que transmite a ideia de que não importa o que o governante faça em seus domínios, tudo é válido para manter-se como autoridade. Ou seja, os governantes precisam estar acima da ética e moral dominante para realizar seus planos. No entanto, essa expressão não se encontra no texto, foi apenas uma interpretação tradicional do pensamento maquiavélico. Esta obra tentava resgatar o sentimento patriota do povo italiano, e foi escrita no contexto que tinha como ideal a unificação italiana. Fica evidente, nesse ponto, a originalidade do pensamento político de Maquiavel.

Maquiavélico

O termo Maquiavélico acabou surgindo para fazer referência aos atos imorais, desleais ou violentos que as pessoas utilizam para obter vantagem. No entanto, o próprio Maquiavel defendia a ética na política, o que faz o sentido pejorativo desse termo ser, de certa forma, uma definição injusta dos ideais de Nicolau. Sua maneira de impor as ideias era diferente do estilo dos cientistas naturais da época.

Família Maquiavel

A família de Nicolau Maquiavel era de origem Toscana e participou dos cargos públicos por mais de três séculos. Seus pais chamavam-se Bernardo Maquiavel e Bartolomea Nelli. Bernardo era jurista e tesoureiro de uma província italiana chamada Marca de Ancona. A mãe era próxima da nobre família de Florença. Nicolau casou-se com Marietta di Luigi Corsim e teve seis filhos.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

O clientelismo e o exercicio do poder no Brasil Paulo M. d’Avila Filho

[…] como a desigualdade existe de início, há duas orientações possíveis: a que tende a apagar a desigualdade pelo esforço social; e a outra que, pelo contrário, tende a recompensar todos na base de suas qualidades desiguais. Weber afirmava […] que entre essas duas tendências antitéticas […] não há escolha governada pela ciência, todo homem escolhe seu Deus ou seu demônio por si mesmo (Raymon Aron).
O clientelismo é um destes termos que, como o populismo, usamos de forma recorrente para explicar certos males nacionais que seriam provenientes de uma condição inescapável de país atrasado. Diagnóstico que vem acompanhado de todos os subprodutos que lhe são peculiares. Uma elite constituída de “raposas velhas” que manipulam um povo ignorante e indefeso em função da sua miséria e baixa escolaridade. Assim, populismo e clientelismo são expressões que nos vêm à mente de imediato quando nos defrontamos com determinada forma de exercício do poder político com a qual não compartilhamos. São termos “guerreiros”, freqüentemente utilizados para desqualificar a ação política de um outro.
Designam certo tipo de exercício do poder que considera demandas específicas de um potencial eleitor em seu cálculo político, obtendo algum tipo de apoio por parte desses demandantes. Quando o mesmo cálculo preside ações que consideramos positivas, chamamo-las de representação democrática de interesses.
Clientelismo, no entanto, é um conceito que descreve uma relação de troca política. Um tipo de troca distinta das trocas sociais em geral, mais inespecíficas, pois trocamos socialmente de tudo: afetos, redes de contatos, presentes etc. Diferente, também, das trocas econômicas, regularmente bem mais específicas – trocas de bens envolvendo mercadorias em uma racionalidade monetária.
O que há em comum entre as trocas sociais e as trocas econômicas é que podem acontecer entre atores sociais mais ou menos assimétricos, entre iguais ou entre sujeitos hierarquicamente dispostos. A troca pode, até mesmo, servir como meio de definição hierárquica dos participantes, como nos sugere Marcel Mauss, no qual o mais generoso é também o mais poderoso.
As trocas políticas, por sua vez, se caracterizam por serem sempre assimétricas, seja do ponto de vista do observador ou dos trocadores. Assimétrica porque opera em um eixo vertical no qual um dos participantes da troca, o demandante – classicamente chamado de cliente –, independente de sua posição social ou status, deseja obter as benesses dos recursos de autoridade política que um outro – tradicionalmente chamado de patronus –, de algum modo, controla ou influencia. São os chamados recursos patrimoniais do Estado sob gestão dos poderes públicos. Toda a sociedade, como nos sugere Weber, funda sua estrutura de organização e poder com base no maior ou menor controle desses recursos e no caráter inexoravelmente discricionário com que se tem acesso a eles. A especificidade do caráter clientelista da troca política diz respeito aos termos não regulados pela lei – embora não seja necessariamente ilegal –, mas fundados em acordo político ou na expectativa mútua entre patronus e cliente em auferir benefícios com a troca.
Marca do atraso brasileiro
Os problemas de interpretação e aplicação do conceito em nosso dia-a-dia não são aleatórios. O tema do clientelismo é recorrente na literatura brasileira. Uma determinada percepção de que seríamos um país atrasado com relação às conquistas de liberdade e igualdade, alicerces de uma ordem exitosa nos modernos países industriais, sugere essa chave de interpretação das mazelas nacionais.
Com base nessa perspectiva, ocorre uma estreita associação entre formas clientelistas de dominação e o fenômeno do atraso. Essa identificação acaba por desagregar o valor heurístico do conceito ao subsumi-lo a um conjunto de denominações correlatas, porém nãoidênticas ao do domínio tradicional.
De um lado, aqueles que creditam os males nacionais ao mandonismo privado das oligarquias – cujo corolário do diagnóstico aponta a captura das estruturas de poder por parte dessas oligarquias. De outro, os que apontam o caráter patrimonialista do Estado brasileiro como grande impedimento à constituição do que seria a “boa ordem”, em cujo diagnóstico imputa à cooptação pelas estruturas de poder do Estado a responsabilidade sobre a ausência de uma sociedade pujante, autônoma e empreendedora.
Esses olhares marcam as leituras sobre o clientelismo no Brasil. A confusão que deriva dessa associação corrobora a dificuldade de entendimento e de uso do conceito mais recentemente. Ainda que sejam, patrimonialismo e mandonismo, formas de clientelismo, não encerram a amplitude do conceito.
O clientelismo acaba sendo encarado de modo estático pelas duas linhas de interpretação. Isso ocorre quando é explicitamente identificado com formas tradicionais, pré-modernas de controle político (que tenderiam a desaparecer com a modernização da sociedade), ou como categoria residual, que sobrevive por meio dos mecanismos igualmente identificados com o atraso ou com formas não-democráticas de organização política – que permanecem como terreno fértil para práticas clientelistas em meio à modernização brasileira, acompanhada pela instabilidade de suas instituições, pela desigualdade social e pela exclusão política.
Desse modo, todo o problema é visto como partindo de uma fórmula dicotômica: clientelismo/atraso – universalismo/moderno. Cidadania e clientelismo são, assim, termos antitéticos. O primeiro tende a suplantar o segundo à proporção que a sociedade se moderniza.
O clientelismo como forma de entrelaçamento entre Estado e setores populares não pode se modernizar, alterando suas fórmulas, com as instituições da sociedade. O problema parece ser a insistência em uma distinção inflexível entre a política clientelista ou tradicional – vista como estática e residual – e a política “radical” – democrática ou moderna –, tanto nas esferas populares como nas legislativas.
Longe de simplesmente suprimir relações de clientela, o aumento da competição política vem reduzindo a distância ou a desigualdade entre patronus e clientes, possibilitando novos formatos e maior espaço de negociação entre as partes, com incidência direta sobre as possibilidades do arranjo.
A recente transição para a democracia testemunhou o grande aumento das disputas inter e intrapartido pelos votos. Da mesma forma, o crescimento das organizações da sociedade civil vem configurando um cenário pluralista cada vez mais poliárquico, que incrementa a competição entre lideranças e associações de perfil popular.
Se esse diagnóstico é correto, permitenos inferir que a democratização, o aumento da competição política, a modernização, a universalização do voto, o aumento da participação e a organização da sociedade civil não contraditam ou excluem formas de clientelismo político, mas criam novas possibilidades de arranjos clientelistas, como apontam diversos autores, entre eles, Eli Diniz (1982); Luiz Henrique N. Bahia (1997); José Murilo de Carvalho (1998); Robert Gay (1999) e Paulo d’Avila Filho (2000).
Tais fatores permitem a configuração de um cenário onde, dentro de contextos democráticos competitivos, a alteração na correlação de forças promovida pela necessidade de atendimento à reivindicação de seus “clientes” por parte dos patronus leva à possibilidade de pensarmos esses arranjos a partir de uma perspectiva ex parte populis. Ou seja, como instrumento estratégico de política por parte desses clientes, e não apenas ex parte principis. Altera-se, dessa forma, o tradicional ângulo de análise do fenômeno.
A questão central em debate é se, ao falarmos de clientelismo, estamos diante de uma herança, resíduo de uma sociedade hierarquizada embutida dentro da sociedade moderna. Se assim for, estaremos vivendo em uma sociedade que ainda não se modernizou completamente e, ao fazêlo, destruiria esses resíduos. Ou, de outra forma, estamos diante de um tipo de relação política que, ao contrário de definhar, tenderia a assumir formas de expressão que disfarçam o seu conteúdo original e frustram as expectativas de superação de traços considerados residuais e passageiros.
Na gênese de toda a ordem social, contudo, está presente uma macrotroca política. Da gênese grega aos clássicos modernos até o debate contemporâneo, estão presentes diferentes teorias acerca dos fundamentos da “boa ordem”, da justiça e dos governos. Todas elas, no entanto, estão se referindo a processos de macrotroca política – nos quais os sujeitos sociais trocam a obediência por alguma noção de ordem pública, bem coletivo, regras ou garantias. Esse processo permitirá o funcionamento das sociedades.
A troca econômica não será possível, no sentido macro, sem um mínimo de garantia fornecido pela troca política. A característica fundamental a toda organização será a produção de hierarquias e assimetrias de poder, presentes no seio da troca política. As outras formas de troca serão autorizadas por uma hierarquia de poder legitimada por leis, consensos, costumes.
O entendimento central dessas considerações para a análise seguinte sobre o fenômeno do clientelismo é de que o que se troca em política não são favores pessoais, como acontece entre indivíduos comuns. São favores de autoridade. Em política, são os benefícios do exercício da autoridade que entram na troca.
Os favores de autoridade não se restringem, é verdade, à autoridade pública, no sentido da burocracia nomeada ou concursada, ou dos legisladores ou executivos eleitos. Têm a ver, também, com as trocas que envolvem o jogo de poder dos diferentes grupos econômicos.
As trocas patrimoniais hierárquicas ou assimétricas não são prerrogativas apenas do poder público, tampouco estão circunscritas contemporaneamente ao formato do mandonismo local. Elas não se limitam ao patrimonialismo de Estado, tão caro à tradição patrimonialista, e assumem formas mais modernas do que aquelas denunciadas pela literatura que opera no eixo do mandonismo.

Raiz da questão
A partir das considerações feitas, é possível analisar que o clientelismo se enraiza intrinsecamente na hierarquia inerente a toda organização. Não constitui, por isso só, um resíduo da sociedade tradicional, um corpo estranho na sociedade do capitalismo.
O clientelismo se manifesta em todos os modos de poder, concorrendo para sua conservação e distribuição nos espaços não regidos pela lei. Pode ser, até mesmo, uma forma de costume. No passado, essencialmente, e em nossa época, o clientelismo aparece como fator endógeno às sociedades estruturadas. Não podem elas – organização e hierarquia – prescindir dele, como nos sugeriu Luiz Henrique Bahia (2003), em seu livro O poder do clientelismo.
Alguns trabalhos de análise empírica feitos em contextos de alegada expansão dos direitos de cidadania, como nos Estados Unidos da América, reforçam o argumento de que o clientelismo será uma forma de intermediação de interesses onde quer que tenhamos assimetrias políticas sobre os benefícios patrimoniais. Ou seja, tanto em contextos ditos menos desenvolvidos como em países considerados de democracia avançada.
Aqui como lá ou alhures, o clientelismo se apresenta como estratégia moderna de obtenção de benefícios por parte dos atores sociais minimamente organizados e desejosos de auferir determinados benefícios, os clientes, com os detentores legítimos dos benefícios patrimoniais, materiais ou simbólicos, seus patronus.
Visto por esse ângulo, portanto, o clientelismo não pode mais ser descrito como fenômeno relacionado ao atraso ou à miséria. Ocorre nos chamados países avançados tanto como no terceiro mundo. É realizado por grandes empresas e conglomerados econômicos dispostos a auferir benefícios de regulação ou outros, e também por grupos mais ou menos organizados em comunidades de baixa renda. Não há nenhuma relação entre a prática do clientelismo e o grau de escolaridade.
Outra perspectiva
É possível, com base na perspectiva aqui adotada, reconsiderar o conceito de clientelismo sustentando dois pontos fundamentais:
  • a) chamar a atenção para alguns problemas provenientes da percepção do clientelismo como um resíduo – marca do atraso que tenderia a ser superado por um processo de modernização democrático –, o que tem dificultado a compreensão do fenômeno como endógeno à organização do poder político e como fórmula moderna de intermediação de interesses;
  • b) sugerir a possibilidade de se pensar o clientelismo como estratégia popular de obtenção de benefícios – particularmente, em contextos de baixa institucionalização de canais de acesso aos centros de decisão política, canais que organizam a distribuição patrimonial de bens e serviços e que se constituem em poderoso instrumento de aquisição de apoio político por parte do patronus.
É possível sustentar, ainda, que o clientelismo é um fenômeno relacionado ao acesso e à exclusão de bens e serviços não regulados diretamente pela ordem jurídica e pelos valores de mercado.
Os mecanismos que fazem parte da troca política assimétrica/clientelista ocupam espaços vazios, onde não há garantias legais, não constituem direitos, mas também não constituem, necessariamente, ilegalidades. Fazem parte do universo possível das trocas políticas entre atores políticos socialmente interessados. Assim, o clientelismo condenável será freqüentemente o clientelismo bem-sucedido do outro, não a minha troca política legítima.
A única possibilidade de eliminação das trocas políticas assimétrico-clientelistas de um contexto social qualquer é na imaginação de uma ordem social que elevasse ao limite a máxima próxima da fabulação rousseauniana – na qual a vontade geral ou a vontade do demos e a autoridade política são uma e mesma coisa. Imaginação política na qual está eliminado o caráter discricionário do contrôle dos recursos materiais ou simbólicos da autoridade política inerente à ordem social que conhecemos, visto que todos, como autoridade política, controlam todos os recursos em nome do todo e do bem comum.

REFERÊNCIAS
BAHIA, L. H. N. Raízes e fundamentos de uma teoria de troca política assimétrica/clientelística. 1997. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Iuperj, Rio de Janeiro. Mimeo. O poder do clientelismo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
CARVALHO, J. M. de. “Mandonismo, coronelismo e clientelismo: uma discussão conceitual”. In: . Pontos e bordados, escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
D’ÁVILA, P. F. Democracia, clientelismo e cidadania: a experiência do orçamento participativo no modelo de gestão pública da cidade de Porto Alegre. 2000. Tese (Doutorado em Ciência Política e Sociologia) – Sociedade Brasileira de Instrução (SBI/Iuperj), Rio de Janeiro. mimeo.
DINIZ, E. Voto e máquina política, patronagem e clientelismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
GAY, R. Rethinking clientelism: demands, discourses and practices in contemporary Brazil. Conecticut: Conecticut College, 1998. Mimeo.

Fonte

Texto original
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