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Boaventura de Souza Santos |
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Analisada globalmente, a democracia oferece-nos duas imagens
muito contrastantes. Por um lado, na forma de democracia representativa,
ela é hoje considerada internacionalmente o único regime político
legítimo. Investem-se milhões de euros e dólares em programas de
promoção da democracia, em missões de fiscalização de processos
eleitorais, e, quando algum país do chamado Terceiro Mundo manifesta
renitência em adotar o regime democrático, as agências financeiras
internacionais têm meios de o pressionar através das condições de
concessão de empréstimos. Por outro lado, começam a proliferar os sinais
de que os regimes democráticos instaurados nos últimos trinta ou vinte
anos traíram as expectativas dos grupos sociais excluídos, dos
trabalhadores cada vez mais ameaçados nos seus direitos e das classes
médias empobrecidas.
Sondagens recentes feitos na América Latina
revelam que em alguns países a maioria da população preferiria uma
ditadura desde que lhe garantisse algum bem-estar social. Acrescente-se
que as revelações, cada vez mais freqüentes, de corrupção levam à
conclusão que os governantes legitimamente eleitos usam o seu mandato
para enriquecer à custa do povo e dos contribuintes. Por sua vez, o
desrespeito dos partidos, uma vez eleitos, pelos seus programas
eleitorais parece nunca ter sido tão grande. De modo que os cidadãos se
sentem cada vez menos representados pelos seus representantes e acham
que as decisões mais importantes dos seus governos escapam à sua
participação democrática.
O contraste entre estas duas imagens
oculta um outro, entre as democracias reais e o ideal democrático.
Rousseau foi quem melhor definiu este ideal: uma sociedade só é
democrática quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e
ninguém seja tão pobre que tenha de se vender a alguém. Segundo este
critério, estamos ainda longe da democracia. Os desafios que são postos à
democracia no nosso tempo são os seguintes. Primeiro, se continuarem a
aumentar as desigualdades sociais entre ricos e pobres ao ritmo das três
últimas décadas, em breve, a igualdade jurídico-política entre os
cidadãos deixará de ser um ideal republicano para se tornar uma
hipocrisia social constitucionalizada.
Segundo, a democracia
atual não está preparada para reconhecer a diversidade cultural, para
lutar eficazmente contra o racismo, o colonialismo e o sexismo e as
discriminações em que eles se traduzem. Isto é tanto mais grave quanto é
certo que as sociedades nacionais são cada vez mais multiculturais e
multiétnicas. Terceiro, as imposições econômicas e militares dos países
dominantes são cada vez mais drásticas e menos democráticas. Assim
sucede, em particular, quando vitórias eleitorais legítimas são
transformadas pelo chefe da diplomacia norte-americana em ameaças à
democracia, sejam elas as vitórias do Hamas, de Hugo Chávez ou de Evo
Morales.
Finalmente, o quarto desafio diz respeito às condições
da participação democrática dos cidadãos. São três as principais
condições: ser garantida a sobrevivência: quem não tem com que se
alimentar e alimentar a sua família tem prioridades mais altas que
votar; não estar ameaçado: quem vive ameaçado pela violência no espaço
público, na empresa ou em casa, não é livre, qualquer que seja o regime
político em que vive; estar informado: quem não dispõe da informação
necessária a uma participação esclarecida, equivoca-se quer quando
participa, quer quando não participa. Pode dizer-se com segurança que a
promoção da democracia não ocorreu de par com a promoção das condições
de participação democrática. Se esta tendência continuar, o futuro da
democracia, tal como a conhecemos, é problemático.