quinta-feira, 17 de setembro de 2015

"Judiciário é um Poder "tão corrupto quanto os outros dois"!

Sociólogo diz que Judiciário é um Poder "tão corrupto quanto os outros dois"


Montagem de Camila Adamolli sobre foto de ESPSP
Imagem da Matéria
Aldo Fornazieri, diretor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo
O Poder Judiciário foi o menos atingido pelos protestos ocorridos no País no mês passado. Em vários lugares ele chegou a ser festejado nas ruas, na figura do ministro Joaquim Barbosa, relator do processo do mensalão no STF.

Pesquisas de opinião realizadas após a grande onda de manifestações confirmam essa percepção. Um levantamento do Ibope destinado a medir anualmente o índice de confiança nas instituições mostra que, enquanto em julho do ano passado a porcentagem de pessoas com alguma ou muita confiança no Judiciário chegava a 59%, no mesmo mês desse ano ela desceu para 50%.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo, em matéria assinada pelos jornalistas Roldão Arruda e José Roberto de Toledo.

Embora seja uma variação significativa, é muito menor do que a verificada com outros poderes. Em relação ao Legislativo, no mesmo período o índice variou de 35% para 25%.

Entrevista com Aldo Fornazieri
A que se pode atribuir essa resistência do Judiciário aos protestos ?

Na entrevista a seguir, o sociólogo Aldo Fornazieri, diretor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, aponta algumas razões. A primeira delas seria "o superávit de imagem positiva" que o STF deu ao Judiciário com o julgamento do mensalão. Esse superávit, porém, na avaliação do sociólogo, é meramente circunstancial e já começou a desmoronar. "O Judiciário é tão corrupto e ineficiente quanto o Legislativo e o Executivo", diz ele.

A que atribui a ausência de ataques ao Judiciário nas manifestações de junho?

Aldo Fornazieri: No momento dos protestos, o Judiciário, especialmente o STF, estava com um superávit de imagem positiva. Ainda havia um recall positivo em torno do julgamento do mensalão, o que tornava esse poder, naquele momento, a instituição de maior credibilidade.
Por que frisou 'naquele momento' ?
Aldo Fornazieri: Porque o Judiciário é tão corrupto quanto os outros dois poderes, o Legislativo e o Executivo. Recorrentemente surgem denúncias e escândalos nesta área. Envolvem muitas vezes a compra e a venda de sentenças. Se pegar o caso específico do Tribunal de Justiça de São Paulo verá que está envolvido com denúncias fortes, sobre o pagamento de benesses indevidas, com o desvio de milhões de reais. Por outro lado, as tentativas de fiscalização do Conselho Nacional de Justiça enfrentaram forte resistência em São Paulo. Não há, portanto, a menor dúvida de que o Judiciário se equipara aos demais poderes em termos de corrupção.
Existiria algum outro motivo, além do mensalão, para o Judiciário ter sido poupado nos protestos ?

Aldo Fornazieri: Eu citaria mais duas razões. A primeira é que os escândalos do Judiciário não têm tanto destaque na mídia quanto os do Legislativo e do Executivo. Eles aparecem menos. A segunda é que o cidadão, de maneira geral, tem uma relação mais direta com o Legislativo e o Executivo - até porque é ele, cidadão, quem elege os representantes nesses poderes. No Judiciário, com exceção dos ministros do Supremo, as figuras são menos conhecidas. Se você citar os nomes dos juízes do Tribunal de Justiça de São Paulo, pouquíssimas pessoas vão identificá-los. A relação entre o Judiciário e os cidadãos, portanto, é mais difusa, o que atenua a fiscalização sobre esse poder.
Há menos percepção na sociedade sobre as falhas do Judiciário ?

Aldo Fornazieri: Sim. Além de tão corrupto quanto os outros poderes, o Judiciário é extremamente deficiente. Quanto demora o julgamento de um caso na Justiça? Pode demorar décadas. Já foram feitas tentativas, nos últimos 15 anos, de reforma dessa estrutura, mas os problemas continuam. O déficit de eficiência permanece.

O senhor inclui o Supremo nessa análise sobre deficiências?
Aldo Fornazieri: Como já disse, o Supremo atravessou os protestos com a imagem razoavelmente boa, em função do mensalão. Logo em seguida, porém, começaram a surgir denúncias sobre uso indevido de equipamentos públicos por parte do próprio Joaquim Barbosa e de outros ministros. Nesse caso também a mídia não deu muita ênfase.
No caso de Barbosa, considera justas as críticas feitas a ele por ter recebido R$ 580 mil em benefícios atrasados ? E quanto à polêmica da compra do apartamento em Miami ? Apesar de existirem controvérsias nos dois casos, aparentemente não há ilegalidades.

Aldo Fornazieri: Não há nada de ilegal também na maior parte das viagens de ministros em aviões da Força Aérea Brasileira. Só no primeiro semestre deste ano havia uma brecha de 1.600 viagens em jatinhos para ministros e outras autoridades. O problema muitas vezes não é tanto o da legalidade - especialmente quando você considera que as leis no Brasil protegem muito os políticos e outros representantes públicos. O problema está mais relacionado à moralidade. Os poderes no Brasil são refratários à ideia de bons exemplos - e o Judiciário se enquadra nessa situação.
O que seria um bom exemplo?
Aldo Fornazieri: Veja o caso do papa Francisco. Quando abre mão do luxo e das benesses do poder, quando opta por um estilo de vida frugal e escolhe um carro mais simples para circular, ele se torna um símbolo disso que estamos falando, que é o bom exemplo. Na teoria, entre os filósofos, os políticos clássicos, sempre se enfatiza a necessidade de bons exemplos da parte dos governantes. Só assim eles contribuem para a melhoria da moralidade da sociedade. Não é isso que se vê no Brasil. Aqui os governantes são especialistas em dar maus exemplos.
Está falando em desperdício de recursos públicos?

Aldo Fornazieri: Sempre. Quando a presidente Dilma Rousseff foi a Roma, para posse do papa, ela e sua comitiva se hospedaram no hotel mais caro da cidade, conforme os jornais divulgaram na época. Isso é um mau exemplo para a sociedade. Quando o Joaquim Barbosa, eventualmente, usa algum equipamento público para algo que não é relevante, também é um mau exemplo.
Voltamos à questão do que não é ilegal mas pode ser imoral.
Aldo Fornazieri: Veja o caso dos carros mantidos por assembleias legislativas e câmaras de vereadores que buscam e levam os parlamentares para suas casas após o trabalho. Embora seja legal, o benefício é ilegítimo e imoral, porque o cidadão comum tem que pegar ônibus para ir ao trabalho. O poder público no Brasil está eivado desses benefícios ilegítimos e imorais. Isso se torna mais grave quando consideramos que a sociedade está carente de bons serviços.

Associa essa carência à queda nos índices de aprovação dos governos, como mostrou pesquisa do Ibope?

Aldo Fornazieri: A pesquisa tratou dos governos federal e estaduais, mas se fosse estendida aos prefeitos o quadro não seria melhor. Há uma clara percepção da sociedade de que os governos não estão atendendo às necessidades fundamentais da população, como saúde, educação e segurança pública. Existe uma crise de governança eficaz no Brasil. Nesse rol também entra o mau uso do recurso público, que equivale a um tipo de corrupção. Quando o Judiciário paga benesses indevidas a seus representantes, quando usa carros de forma indevida e assim por diante, é uma forma de corrupção. Ela não se resume ao roubo de dinheiro público.

Fala-se muito no abismo que existiria entre governados e governantes. Isso se estende ao Judiciário?

Aldo Fornazieri: Ele está completamente distante da sociedade. Os juízes estão numa redoma, na qual ignoram o que acontece ao seu redor e usam de forma indevida os recursos públicos. Muitos são permissivos com os que têm dinheiro e poder e rigorosos com pobres e desamparados.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Cada cabeça, uma sentença



Por Hélio Doyle
Uma grande bobagem muitas vezes repetida não se torna, necessariamente, verdade. Um bom exemplo é a gasta afirmação de que “decisão judicial não se discute, cumpre-se”. Discute-se, sim, principalmente quando é absurda e contraria o bom senso. Até porque muitas vezes leigos demonstram muito mais sapiência e bom senso do que alguns togados.
Os primeiros a discutir decisões judiciais, com inesgotáveis recursos judiciais e chicanas jurídicas, são os advogados das partes. É dever de ofício, favorecido pela complexa, antiquada e retrógrada legislação brasileira que ajuda a Justiça a ser lenta e é especialmente benéfica para quem tem muito dinheiro, graças aos recursos protelatórios bem manejados por advogados caros.
Mas não apenas os advogados – e, de outro lado, o Ministério Público -- têm o direito de discutir, nos autos, uma decisão judicial. Qualquer cidadão pode fazê-lo fora dos autos, mesmo desconhecendo a lei e seus meandros. Porque, para as pessoas comuns, fazer justiça não depende de filigranas jurídicas, mas de bom senso. As filigranas, geralmente, atrapalham a administração da Justiça.
Como, então, não discutir a ridícula decisão do presidente – veja-se, presidente – do Tribunal Regional Federal 1, que liberou o pagamento de remuneração acima do teto constitucional para felizes funcionários do Senado. Não é preciso ser operador do Direito, como gostam de se chamar os advogados, para ver que o magistrado escreveu um monte de bobagens para justificar sua decisão esdrúxula. Com palavras difíceis, claro.
Segundo o nobre presidente, limitar o salário dos funcionários do Senado atenta contra a ordem pública e poderia inviabilizar os serviços da Casa Legislativa. Não se pode dizer isso impunemente, quanto mais escrever. O meritíssimo achou que sem receber os valores acima de R$ 26.713 os servidores do Senado iriam fazer greve ou se sentir à vontade para não trabalhar? Bem, e se ficassem, alguém sentiria falta? Essa decisão do presidente – presidente! – do TRF 1 foi divulgada, mas quantas mais, tão absurdas como essa, terá ele emitido ao longo de sua carreira jurídica?
Felizmente há, no mesmo TRF 1, uma desembargadora aparentemente mais preparada do que o presidente. Ela manteve a limitação dos salários dos servidores da Câmara nos valores do teto constitucional, conforme havia decidido o juiz de primeira instância. Ambos certamente não têm os mesmos delírios do presidente e não viram ameaça à ordem pública em limitar os salários em apenas R$ 26.713. Mas a decisão final será tomada pelo tribunal, algum dia, não se sabe quando. Até lá, por esses absurdos que ninguém explica convincentemente, os servidores do Senado podem ultrapassar o teto, os da Câmara não podem.
Essa é a Justiça brasileira. Propositalmente confusa, verborrágica, lenta, formal, ministrada muitas vezes por juízes despreparados, quando não – como se tem visto – corruptos, vendedores de despachos e sentenças. Uma Justiça que adora feriados, enforcamentos e recessos.
Outro episódio recente que também demonstra a fisionomia da Justiça brasileira é o da absolvição, por um tribunal do júri, da agricultora que passou a vida sendo violentada pelo pai, com quem teve filhos, e quis impedir que a filha tivesse o mesmo destino. Especialistas especularam, nos dias seguintes, que se ela tivesse sido julgada por um juiz teria sido condenada, embora com possíveis atenuantes. Sem falar que, por decisão judicial, ficou um bom tempo presa.
O júri, formado por pessoas comuns, fez, assim, mais justiça do que fariam juízes que passaram pelo menos cinco anos estudando Direito e mais alguns anos estudando para fazer concurso. Alguma coisa está errada, é óbvio. O júri é leigo e pode se influenciar emocionalmente pelos fatos, pela retórica do promotor ou do advogado, o que é ruim. Mas o juiz está limitado pelo tecnicismo e pelo formalismo de diplomas legais feitos para complicar, e não para simplificar. E o que é complicado vale mais.
O que talvez a Justiça brasileira precise, além de muitas outras coisas, como uma legislação mais simples, direta e eficaz, é equilibrar sua aplicação, pelo menos em causas criminais e menos especializadas, entre juízes preparados técnica e filosoficamente para o exercício da função e pessoas comuns, equilibradas e com bom senso. Parece absurdo, e certamente os operadores do Direito vão rir da proposta, mas há decisões judiciais que, seguramente, não seriam tomadas por pessoas comuns, equilibradas e com bom senso.
Mas tem uma coisa essencial: esses juízes leigos não poderiam ser indicados por políticos, como eram os vogais da Justiça do Trabalho. Já é difícil viabilizar a ideia, com políticos no meio é que não daria certo mesmo.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

A tragédia do clientelismo

Hamilton Garcia de Lima
Vem se tornando bastante comum, no meio acadêmico e entre os formadores de opinião, a percepção de que o clientelismo é um falso problema, pois manifestação hodierna, mesmo que enviesada, da inclusão política e social. Para estes intelectuais, o clientelismo vem ao encontro dos anseios de cidadania dos excluídos, derivando daí a razão de sua popularidade entre as maiorias carentes de políticas públicas e sua impopularidade entre a minoria já atendida por elas ou pagadora de serviços privados.Os argumentos positivantes do clientelismo são, como ocorre em grande medida à maioria dos produtos da perspectiva funcionalista de viés conservador, bastante simplificadores, não obstante sua aparente sofisticação. O aspecto mais problemático deste tipo de abordagem encontra-se em sua relativa alienação histórica: partindo de uma literatura estrangeira e de sua tosca adaptação ao nosso contexto nacional, perde-se de vista que não se trata de fenômeno assincrônico, ou seja, desconectado de um contexto específico que lhe empresta determinado sentido em vez de outro.
Se alguma inteligibilidade tal análise nos permitisse, ela não ultrapassaria os umbrais das periferias das maiores cidades brasileiras nos anos 1960-1980, quando a expansão econômica criou as grandes cidades-dormitório carentes de Estado. Neste cenário, as políticas públicas adentraram a vida cotidiana pela mão de chefes políticos locais que manipulavam discricionariamente recursos de estruturas estatais embotadas — como foi o caso da Baixada Fluminense sob o tenorismo e o chaguismo.
Hoje, ao contrário, a função social do clientelismo é marginalmente prover serviços onde eles não existem e muito mais perverter estruturas estatais razoavelmente desenvolvidas e estruturadas, em proveito de grupos privados de poder. Não que não existam buracos na malha estatal de serviços — no plano federal, estadual e municipal —, mas tais “buracos” são politicamente construídos visando a enfraquecer o Estado em proveito do empoderamento dos grupos que controlam o voto popular.
Neste novo contexto predominante, em níveis diferentes conforme o desenvolvimento regional, estes “buracos negros” atraem uma massa compacta de interesses privados que impedem o fluxo normal do interesse público, promovendo-o por caminhos perversos. Apesar da irracionalidade burocrática do procedimento, sua legitimação ocorre pela prevalência do senso comum popular, que tende a perceber o interessse privado como mais palpável e seguro que o interesse público — pecado venial da superficialidade leiga, que não poderia ser repetido por intelectuais de alta cultura.
Na modernidade, o interesse público é provido através de estruturas burocráticas, cujos objetivos são o de maximizar os benefícios ao maior número possível de pessoas a um custo economicamente sustentável. Nela, o clientelismo atua não como agente catalizador de políticas públicas, como na protomodernidade, mas como corrosivo de estruturas burocráticas que as canalizariam em proveito da cidadania, restringindo, ao invés de ampliar, o alcance e a efetividade das políticas de bem-estar.
É o caso, por exemplo, das freqüentes interferências de vereadores e deputados, ou pretendentes, nas organizações públicas de ensino, saúde, assistência social, etc., visando a privatizar parcelas de suas estruturas de atendimento em benefício de seus cabos eleitorais e potenciais eleitores. Neste esforço político predatório, os agentes públicos são coagidos, sob pena de perderem seus cargos ou bônus de promoção, a fraudarem a ética pública em proveito da ética egoísta dos dirigentes do Estado e seus asseclas, sacrificando, em proveito de critérios eleitorais, os critérios técnicos e impessoais de seleção para admissão em creches, escolas e leitos hospitalares dependentes da rede pública.
O clientelismo, sob esta ótica, é muito mais perverso do que outrora, quando as estruturas burocráticas do Estado mal se formavam. Isto porque, hoje, ele se limita a corromper as possibilidades de atendimento generalizado de boa qualidade, criando, de quebra, um grave problema político: a desmotivação e o desvirtuamento do funcionário público, bem como a fragmentação da própria cidadania. Ambas as vítimas do clientelismo perdem sua autonomia e passam a cultivar laços de dependência com quadrilhas “políticas” que as tranformam em verdadeiros vassalos, pedintes de seus algozes, em meio a uma anomia civil e corporativa que lembra mais o velho “coronelismo” que a tão almejada modernidade.
As eleições que se avizinham, sem as reformas poíticas que fortaleceriam os partidos e outros atores coletivos democráticos, estão fadadas a repor o status quo do clientelismo hodierno e seus malefícios, marca registrada do Brasil: um país desigual e injusto que tropeça na tacanhez histórica de sua elite política.
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Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor da UENF (Campos, RJ).

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

A corrupção ainda no primeiro plano

Nos tempos hipermodernos em que nos encontramos, a corrupção tornou-se um problema que desafia e surpreende.
Nem seria preciso a recente descoberta de um vasto esquema de fraudes, ilícitos e cobrança de propinas no coração da Prefeitura de São Paulo para que a corrupção voltasse ao primeiro plano. Correndo ao lado da CPI de Carlos Cachoeira, da cassação do senador Demóstenes e do vai-e-vem que cerca o início do julgamento dos acusados pelo mensalão de 2005, as novas suspeitas turbinaram o problema.
O caso paulistano é escabroso, para dizer o mínimo. Deixa patente que a corrupção tem mil tentáculos. Não é comandada por um centro articulador claramente localizado. Sua cabeça não está em Brasília, por exemplo. O fenômeno está disseminado, podendo se manifestar em qualquer canto do país, e talvez seja até mais grave quanto mais baixo se desce na estrutura político- administrativa do Estado, onde há menos fiscalização e controle. Também não é monopólio de nenhum grupo ou partido; todos estão sujeitos a ela e todos podem vir a praticá-la, ativa ou passivamente. Não reconhecer isso é limitação ideológica.
Se quisermos enfrentar a sério o problema, vale a pena dilatar o conceito, para nele incluir, além dos crimes financeiros, uma série de procedimentos e atos que produzem menos frisson, mas são igualmente graves. Ou não haveria corrupção, por exemplo, na atitude de um parlamentar que se ausenta do plenário mas permite que seus assessores registrem sua presença e votem em seu nome? Não seria corrupto um servidor público que exige, do usuário dos serviços, um elenco enorme de documentos e exigência só para postergar o atendimento, ou justificar uma falha do sistema? Um policial que achaca e humilha um suspeito só pelo prazer de vê-lo acatar sua autoridade é tão corrupto quanto o cidadão que sonega o imposto de renda porque se convenceu de que o governo usa mal o dinheiro que arrecada.
A corrupção é uma falha ética. Anda junto com o poder (político, econômico ou ideológico), como se fosse uma espécie de efeito colateral: onde há poder e poderosos há sempre a probabilidade de abuso, e no abuso está a raiz da corrupção.
Nos tempos hipermodernos em que nos encontramos, a corrupção tornou-se um problema que desafia e surpreende. Redes, tecnologias de informação e comunicação, uso intensivo do espaço virtual, uma mentalidade que transforma tudo em mercadoria, oportunidade e negócio, um desejo socialmente incontido de consumir e ostentar, tudo isso atiça a corrupção. Faz com que ela tenda a ficar fora de controle, a ultrapassar fronteiras, a se sofisticar. O crime organizado, o narcotráfico, os atentados ambientais, a luta sôfrega por mercados, a facilidade com que se obtêm informações, são muitos os combustíveis.
Mas aquilo que a impulsiona também ajuda a freá-la: os mesmos fluxos virtuais funcionam como vitrines de atos escabrosos, roubando legitimidade deles e de certo modo controlando-os. A democratização da vida social faz com que o poder se torne mais visível e menos onipotente. Além do mais, o Estado brasileiro não é indefeso; está institucionalizado e bem aparelhado, dispõe de atualizados sistemas de controle internos e externos à administração pública, que criam incentivos à accountability, ao controle da burocracia, à isenção e à transparência. O poder público é vigiado pela sociedade civil, pela mídia, pela opinião pública, tem seus serviços avaliados cotidianamente pelos cidadãos. A corrupção é condenada pela opinião pública, algumas punições ocorrem e há muitos esforços governamentais para debelá-la.
Mesmo assim, problema persiste. O que sugere que ainda não conhecemos suficientemente seus meandros e suas determinações.
Ainda não avaliamos, por exemplo, a real força que o dinheiro tem na modelagem do Estado, no exercício do poder político, no funcionamento do sistema representativo, no processo eleitoral e no modo de fazer política. Talvez por acreditarmos que um regime democrático está vacinado contra desvios e defeitos, menosprezamos a análise das relações entre os negócios e a democracia. Abandonamos a discussão sobre a qualidade da democracia, tema que agora frequenta alguns núcleos acadêmicos mas que ainda não estacionou no centro da agenda pública.
Também não conhecemos a fundo o efeito que a falência dos partidos como sujeitos de programa, vontade e ação tem na maré montante da corrupção. Nossos partidos não são mais “escolas de quadros”, espaços privilegiados de seleção de lideranças ou organizadores de consensos sociais. Passaram a potencializar os defeitos do sistema partidário, sua permissividade exagerada, sua flexibilidade e sua falta de critério institucional. Colaboram, com ou sem intenção, para rebaixar a qualidade da política e aproximá-la do submundo.
Esses dois fatores combinam-se perversamente em nosso “presidencialismo de coalizão”, minando o que se tem de avanço institucional em termos de controles sobre o Estado.
Por fim, precisamos acertar as contas com os fatores culturais da corrupção. Culpar a formação nacional ou a cultura política pelo que há de corrupção na sociedade é um mau caminho, especialmente se não se levar em conta a dinâmica social e a construção do Estado. Não há uma maldição cultural oprimindo a sociedade, por mais que se tenha de reconhecer que nenhum povo é livre de moldes culturais e tradições, que aderem a seu corpo como uma segunda pele. Cultura política é uma construção social, que acompanha o desenvolvimento histórico. Não podemos ignorá-la, mas será um erro se a empregarmos para naturalizar a corrupção.
Se juntarmos as pontas desse novelo, compreenderemos que a corrupção não é uma força da natureza, mas uma coisa dos homens. Em suma, algo que pode ser enfrentado e combatido, ainda que não possa ser peremptoriamente eliminado.
Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 28/07/2012, p. A2

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

O clientelismo e o exercicio do poder no Brasil

Paulo M. d’Avila Filho
[…] como a desigualdade existe de início, há duas orientações possíveis: a que tende a apagar a desigualdade pelo esforço social; e a outra que, pelo contrário, tende a recompensar todos na base de suas qualidades desiguais. Weber afirmava […] que entre essas duas tendências antitéticas […] não há escolha governada pela ciência, todo homem escolhe seu Deus ou seu demônio por si mesmo (Raymon Aron).
O clientelismo é um destes termos que, como o populismo, usamos de forma recorrente para explicar certos males nacionais que seriam provenientes de uma condição inescapável de país atrasado. Diagnóstico que vem acompanhado de todos os subprodutos que lhe são peculiares. Uma elite constituída de “raposas velhas” que manipulam um povo ignorante e indefeso em função da sua miséria e baixa escolaridade. Assim, populismo e clientelismo são expressões que nos vêm à mente de imediato quando nos defrontamos com determinada forma de exercício do poder político com a qual não compartilhamos. São termos “guerreiros”, freqüentemente utilizados para desqualificar a ação política de um outro.
Designam certo tipo de exercício do poder que considera demandas específicas de um potencial eleitor em seu cálculo político, obtendo algum tipo de apoio por parte desses demandantes. Quando o mesmo cálculo preside ações que consideramos positivas, chamamo-las de representação democrática de interesses.
Clientelismo, no entanto, é um conceito que descreve uma relação de troca política. Um tipo de troca distinta das trocas sociais em geral, mais inespecíficas, pois trocamos socialmente de tudo: afetos, redes de contatos, presentes etc. Diferente, também, das trocas econômicas, regularmente bem mais específicas – trocas de bens envolvendo mercadorias em uma racionalidade monetária.
O que há em comum entre as trocas sociais e as trocas econômicas é que podem acontecer entre atores sociais mais ou menos assimétricos, entre iguais ou entre sujeitos hierarquicamente dispostos. A troca pode, até mesmo, servir como meio de definição hierárquica dos participantes, como nos sugere Marcel Mauss, no qual o mais generoso é também o mais poderoso.
As trocas políticas, por sua vez, se caracterizam por serem sempre assimétricas, seja do ponto de vista do observador ou dos trocadores. Assimétrica porque opera em um eixo vertical no qual um dos participantes da troca, o demandante – classicamente chamado de cliente –, independente de sua posição social ou status, deseja obter as benesses dos recursos de autoridade política que um outro – tradicionalmente chamado de patronus –, de algum modo, controla ou influencia. São os chamados recursos patrimoniais do Estado sob gestão dos poderes públicos. Toda a sociedade, como nos sugere Weber, funda sua estrutura de organização e poder com base no maior ou menor controle desses recursos e no caráter inexoravelmente discricionário com que se tem acesso a eles. A especificidade do caráter clientelista da troca política diz respeito aos termos não regulados pela lei – embora não seja necessariamente ilegal –, mas fundados em acordo político ou na expectativa mútua entre patronus e cliente em auferir benefícios com a troca.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

O Coronelismo



Ascensão e Queda do Coronelismo
O coronelismo foi um sistema de poder político que vicejou na época da República Velha (1889-1930), caracterizado pelo enorme poder concentrado em mãos de um poderoso local, geralmente um grande proprietário, um dono de latifúndio, um fazendeiro ou um senhor de engenho próspero. Ele não só marcou a vida política e eleitoral do Brasil de então como fez por contribuir para a formação de uma clima muito próprio, cultural, musical e literário que fez da sua figura um participante ativo do imaginário simbólico nacional. Não só os homens de letras procuraram reproduzir em seus livros o que era viver sob o domínio de um coronel, como os feitos e as façanhas deles foram transmitidas, a luz de velas, de lamparinas e de lâmpadas, pela história oral do avô para o seu neto, fazendo com que quase todo mundo soubesse de uma "história" ou "causo do coronel". Identificado com o Brasil do passado, agrário, rústico e arcaico, ele ainda sobrevive em certas comarcas e em certos estados do Nordeste brasileiro como o poderoso "mandão local", uma espécie de velho barão feudal que, desconsiderando as razões do tempo e da época, insiste em manter-se vivo e atuante.

As Origens Remotas do Coronelismo
O coronelismo institucional surgiu com a formação da Guarda Nacional, criada em 1831, como resultado da deposição de dom Pedro I, ocorrida em abril daquele ano. Inspirada na instituição francesa, forjada pelos acontecimentos de 1789, a "guarda burguesa" era uma milícia civil que representava o poder armado dos proprietários que passaram a patrulhar as ruas e estradas em substituição às forças tradicionais, derrubadas pelos revolucionários. Para ser integrante dela era preciso pois ser alguém de posses, que tivesse recursos para assumir os custos com o uniforme e as armas necessárias (200 mil réis de renda anual nas cidades e 100 mil réis no campo).

Coronel, Sinônimo de Poder
O governo da Regência (1831-1842) colocou então os postos militares à venda, podendo então os proprietários e seus próximos adquirirem os títulos de tenente, capitão, major, tenente-coronel e coronel da Guarda Nacional (não havia o posto de general, prerrogativa exclusiva do Exército). Assim é que com o tempo, o coronel passou automaticamente a ser visto pelo povo comum como um homem poderoso de quem todos os demais eram dependentes. Configurou-se no Brasil daqueles tempos uma clara distinção social onde os representantes dos dominantes eram identificados pelo rango militar (coronel, major, etc..) enquanto que os dominados pelo coronel o eram pela visível identificação genérica de "gente", ou a zoológica "cria" (sou "cria" do coronel fulano).