sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

As muitas faces do financiamento de campanha

Considerado a raiz da maioria dos males políticos do país, atual modelo, que permite doações de empresas, é alvo de críticas de todos os lados. Julgamento no STF pode antecipar início das mudanças eleitorais

As eleições no Brasil estão entre as mais caras do mundo. Segundo levantamento da revista Em Discussão! com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o custo do voto nas eleições presidenciais, por exemplo, cresceu quase quatro vezes entre 2002 e 2014, passando de R$ 227 milhões (valor atualizado) para R$ 830 milhões.
Campanhas mais caras significam maior dependência do poder econômico para uma candidatura competitiva — ou seja, mais participação e maior influência dos grandes doadores eleitorais, que são as grandes empresas.
Na legislação eleitoral vigente, não há limite em valores absolutos para a doação por parte de pessoas jurídicas, que podem doar até 2% do faturamento bruto do ano anterior, fatia que será mais vultosa quanto maior for a companhia. Também não há restrição a que uma mesma empresa financie candidatos diferentes.
O fenômeno incomoda tanto a classe política quanto a sociedade civil organizada. O senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), por exemplo, não mede palavras. Para ele, o sistema está “putrefato”. “Tem que acabar já, de preferência ontem. Insistir nele é corroer todas as estruturas do estado democrático de direito”, diz. Já o líder do PT no Senado, Humberto Costa (PE), acredita que o financiamento privado de campanhas “tem sido o principal responsável por boa parte dos escândalos do país”.
Os problemas atuais
O juiz eleitoral Márlon Reis, fundador do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), enxerga que uma “relação inadequada” se desenvolveu entre políticos e empresas devido ao modelo de financiamento privado. “As doações dão às empresas o direito de escolher a maior probabilidade de êxito. Os grandes doadores definem e quem não pode ou não quer doar fica em dificuldades depois, nos contatos políticos com o Estado. Não há finalidade cívica. É investimento”, explica.
O barateamento das campanhas e a redução do papel das empresas são apontados como prioridades em uma reforma política. O caminho indicado por diversos parlamentares e representantes de entidades é a adoção de alguma forma de financiamento público das campanhas.
Para Randolfe Rodrigues, a falência do modelo do financiamento privado está sendo demonstrada pela Operação Lava-Jato, da Polícia Federal, que investiga empresas suspeitas de pagarem propinas para garantir contratos com a Petrobras. “É a institucionalização da corrupção. Doa-se legalmente, mas depois ganha-se em licitação. Até o financiamento legal acaba sendo uma lavanderia”, resume o senador.
Randolfe também usa um exemplo concreto para ilustrar a influência das empresas doadoras de grandes somas. Ele relata que o grupo JBS, principal doador em 2014, com R$ 352 milhões distribuídos entre diversas candidaturas, protestou contra a indicação da senadora licenciada Kátia Abreu (PMDB-TO) para o Ministério da Agricultura. “[A empresa] ficou insatisfeita com a nomeação e tentou vetar. Tenho minhas divergências com a senadora Kátia, mas o que a JBS está fazendo é uma chantagem ao governo, por ter interesses econômicos contraditórios”.
O juiz Márlon Reis entende que a confusão entre público e privado na prática governamental brasileira é, hoje, nada mais do que extensão das relações econômicas indiscriminadas entre candidatos e empresas durante o período eleitoral. “A campanha é a véspera do mandato. Se a campanha for uma relação íntima entre candidatos e empresas, ela perdurará depois, até como forma de recompensar essas empresas”, explica.
Movimentação da OAB
Até agora, o passo mais contundente para desmontar a influência das grandes empresas no financiamento de campanhas foi dado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A organização entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF) contra as doações eleitorais feitas por empresas.
O processo tem, por enquanto, seis votos favoráveis e um contrário — ou seja, já construiu maioria no STF, que é composto por 11 ministros. Um desses votos é do ministro Luís Roberto Barroso.
Para Barroso, o financiamento por empresas é “antirrepublicano e antidemocrático” por duas razões: não impede que o mesmo doador financie vários candidatos e não restringe a participação de empresas doadoras na gestão do governante eleito. “Isso não é exercício de liberdade de expressão, portanto considero que nesta hipótese ou há uma pressão — para não dizer um achaque — ou a pessoa está comprando um favor futuro. O candidato eleito termina pagando com dinheiro público o favor privado”, critica o ministro.
O presidente da OAB, Marcus Vinicius Coêlho, argumenta que a prática fere o princípio constitucional da igualdade. “O atual regime exacerba as desigualdades sociais ao permitir que os ricos tenham possibilidade muito maior de influir nos resultados das eleições. Alguém, por ter mais recursos ou por ser dono de uma empresa, não pode ter um fator de participação maior no momento mais importante da democracia”, discorre ele.
A movimentação no Supremo, provocada pela ação da OAB, pode levar o tribunal a se pronunciar sobre a questão antes do Congresso Nacional, já abrindo o caminho para o debate.
O cientista político David Fleischer, da Universidade de Brasília (UnB), crê que a expectativa do resultado favorável à ação pode quebrar a inércia do Legislativo em debater objetivamente o financiamento. “Ao decidir, os parlamentares terão em mente a decisão do STF. Acho que essa tendência de vetar a doação de empresas vai ajudar a convencer a classe política a favor do financiamento público”.
A votação no STF está parada desde abril, devido a um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. Humberto Costa já protestou no Plenário do Senado contra a demora e cobrou de Mendes a devolução do processo.
“O Poder Judiciário deve cumprir a sua parte com o aperfeiçoamento da democracia no Brasil. Senhor ministro, o Brasil espera que Vossa Excelência devolva ao debate essa ação, para que o STF possa tomar uma ação definitiva”, exortou o líder do PT, em outubro.
Dinheiro público
Entre quem debate o tema, não existe consenso a respeito de qual forma deveria tomar um modelo de financiamento público de campanha ou quais dimensões e profundidade ele alcançaria. Entre os questionamentos que se colocam na discussão, estão a proibição total ou parcial da participação de empresas, a questão das doações por pessoas físicas e a forma de distribuição do dinheiro público destinado a financiar campanhas.
O ex-senador Francisco Dornelles, hoje vice-governador do Rio de Janeiro, presidiu, em 2011, a Comissão Especial de Reforma Política do Senado, que elaborou diversos projetos de reestruturação política e eleitoral — nenhum dos quais foi aprovado em definitivo até hoje. Ele é favorável a mudanças, mas não muito profundas. “É muito difícil fazer um financiamento exclusivamente público. O sistema que existe hoje deve ser aperfeiçoado, estabelecidos alguns limites”, defende.
Apesar de apoiar a redução da participação do setor privado no financiamento de campanhas, Dornelles mostra-se reticente quanto a um modelo de financiamento completamente público, bancado pelos cofres do Estado. Ele também tem dúvidas quanto ao manuseio dos recursos. “Hoje você pode dar dinheiro a quem pensa como você. No financiamento público, seu dinheiro vai para partidos que você não gostaria de ajudar. E como uma cúpula partidária distribuiria esses fundos? Mandariam para os amigos do partido, os estados em que eles querem prevalecer”, questiona.
O senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) confia na viabilidade de um modelo de financiamento público, contanto que ele venha acompanhado de uma mudança no sistema eleitoral proporcional que institua o voto em lista fechada para as eleições proporcionais (de deputados e vereadores). Essa medida, para ele, permitiria uma distribuição organizada do dinheiro e facilitaria a fiscalização dos gastos pelos tribunais eleitorais.
“No momento que você tem uma lista preordenada, nenhum candidato vai fazer campanha individual, e sim partidária. Com a lista, cabe aos tribunais fiscalizar apenas 32 partidos. Hoje, sem a lista, é necessário fiscalizar 500 mil candidaturas no Brasil. É inviável”, diz Caiado.
O senador acredita, ainda, ser uma temeridade entregar o dinheiro diretamente aos candidatos e entende que o financiamento público, se aplicado, deveria abastecer os caixas dos partidos, que então distribuiriam as verbas entre os candidatos segundo critérios próprios — daí a necessidade, para ele, do sistema de candidaturas em lista fechada.
A necessidade de conjugar o financiamento público à adoção da lista fechada também é lembrada pelo professor David Fleischer. Ele ainda coloca como alternativa a proposta do movimento Coalizão Democrática, capitaneada pela OAB e outras 43 entidades, que propõe eleição proporcional em dois turnos, sendo o primeiro reservado à votação na legenda para definir os quocientes partidários e o segundo dedicado à votação nominal em candidatos, estabelecendo os eleitos. Ambos os casos são vistos por Fleischer como formas de reduzir os custos as campanhas.
“O financiamento público só vai ser viável se a quantidade de candidatos for reduzida drasticamente, e a lista fechada pode ajudar. A proposta de eleições proporcionais em dois turnos reduz o número de candidatos no segundo, e a campanha entre os turnos tem duração pequena, o que reduz as despesas eleitorais”.
Já para definir em que proporção o dinheiro chegaria aos partidos, o senador Ronaldo Caiado sugere um cálculo que combine a representação parlamentar das legendas e o peso das bancadas estaduais. Partidos com mais membros na Câmara receberiam mais verbas nas eleições seguintes, de forma a refletir a preferência do eleitorado. Esse critério seria ponderado pelos desempenhos eleitorais dos partidos nos diferentes estados, de forma a melhor contemplar as siglas que fossem mais bem votadas nos estados mais populosos.
A forma de distribuição do dinheiro é objeto de um projeto de lei já existente no Senado, fruto dos trabalhos da Comissão Especial de Reforma Política. O Projeto de Lei do Senado 268/2011 aplica as regras de distribuição de verbas do Fundo Partidário às verbas públicas que seriam destinadas ao financiamento eleitoral. Ao mesmo tempo, ele cria barreiras à participação de pessoas físicas e jurídicas no caixa dos partidos.
A justificativa do texto elaborado pela comissão especial ressalta que os dispositivos permitem uma melhor fiscalização da prestação de contas dos partidos, já que determina a separação do caixa de campanha dos demais recursos e define a quantia exata de dinheiro lá disponível. O projeto foi aprovado em caráter terminativo pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), mas foi alvo de um recurso para ir a votação no Plenário, onde ainda não foi incluído na ordem no dia.
Modelo diferente de financiamento de campanhas com dinheiro público é sugerido pelo senador Reguffe (PDT-DF). Ele não considera uma boa ideia distribuir os recursos diretamente para partidos ou candidatos, pois vê brecha para mau uso do dinheiro ou proliferação de legendas de aluguel. “Vai ter gente querendo ser candidato só para ganhar dinheiro”, alerta.
A ideia de Reguffe é a realização de licitações para cada um dos serviços da campanha eleitoral, como impressão de panfletos e gravação de programas de rádio e televisão. A empresa que vencesse a concorrência prestaria o mesmo serviço a todos os candidatos, igualando a disputa em termos de produtos.
“A campanha seria chata, mas a pessoa teria que ganhar no convencimento, no conteúdo, nas propostas. Isso daria uma menor desigualdade e uma igualdade de condições entre todos os que fossem candidatos. Aí seria democracia pra valer”, explica o senador Reguffe, que já chegou a apresentar a mesma proposta quando era deputado federal, mas promete defendê-la no Senado.

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